24 de dezembro de 2011

Sobre um espelho d'água e uma garota feia

Era uma vez, há não muito tempo atrás, um espelho d'água parado no tempo. Solitário em sua floresta, passava os dias ouvindo o canto encantado do vento, que agradecia a atenção acariciando ternamente a face do espelho.

O espelho era diferente e especial dentre os outros de onde vivia. Ele possuía uma capacidade única. A capacidade de revelar mais do que aquilo que era visível aos olhos; exibindo a pessoa secreta do coração de quem se atravesse a encará-lo. O ingênuo espelho nunca entendeu o por quê, mas isso afastava as pessoas. Quem não tem medo de descobrir aquilo que realmente é? Quem tem coragem para se olhar no espelho da verdade? A sinceridade que lhe foi dada como dom, acabara se tornando uma maldição.

Era, numa mesma vez, uma garota feia. Uma garota a quem a vida, de sobrenome cruel e injusta, havia ao mesmo tempo que abençoado com uma bela personalidade, amaldiçoado com uma aparência feia. Ela era , apesar de tudo, amada por sua família, os únicos que por conhecê-la de verdade eram capazes de ignorar aquilo que aparentava ser. E era na sua família que ela se escondia de um mundo amargo e vaidoso. Um dia porém, ela seria obrigada a sair de seu esconderijo.

Numa tarde ensolarada esse dia chegou. Todas as pessoas do mundo haviam sido convocadas a sair de suas casas e contemplar o Sol. Todas as pessoas, inclusive uma garota feia. 

Via-se a preocupação estampada nas faces dos familiares da garota feia. Ela, no entanto, fingia ter uma força que  nunca teria. Sua fortaleza se manteve enquanto as primeiras pessoas riam-se dela, mas pouco a pouco, as risadas e deboches começaram a atingir sua coragem como espinhos na carne. Por mais que tentasse ignorar, tudo o que conseguia era se magoar. O sangue que deveria correr de suas feridas, desciam através de lágrimas.

Correr. Fugir.Jamais faria.

Faria?

Fez.

Correu como se pudesse estar deixando a dor para trás. Fugiu do que nunca seria e não parou. Não parou até deixar de ouvi-los gargalhar. Correu mais do que precisava, mais do que devia. Seus pés tocaram caminhos que não conhecia, mas não parou. Continuou correndo até parar. Parar no meio de uma floresta. Parar em frente a um espelho d'água. Um espelho d'água parado no tempo.


O espelho d'água a viu chegar; e o coração que não tinha bateu mais forte. Aquela era a garota mais bonita que já tinha visto. Ela era o ser mais belo que já havia existido.  Ele queria que a garota se aproximasse, precisava apreciar sua beleza mais de perto. Pela primeira vez, o espelho não via o seu dom como uma praga.

O coração que a garota levava nas mãos se acalmou. Ela respirou fundo e ainda receosa começou a se aproximar do espelho d'água. Não sabia o que encontraria ao encarar seu reflexo, mas o vento parecia conspirar para que o fizesse. Já na margem, ela se ajoelhou, e então se viu refletida no espelho d'água.

A garota feia não se reconheceu naquela garota linda mostrada pelo espelho d'água. Precisou de uma comprovação do vento e da floresta para acreditar, e ainda assim desconfiou. Esperou que a imagem mostrasse aquilo que ela esperava ver, mas isso não aconteceu.  

Quando compreendeu a verdade, sorriu. O sorriso deixou a garota linda ainda mais radiante e a garota feia mais fascinada. Ela, que nunca havia sido vaidosa, começava a ser. Ah! Como queria que aqueles malditos que riram dela a vissem naquele momento. Como queria se parecer com o reflexo que o espelho mostrava.
A garota feia deixou que sua mágoa se transformasse em raiva, e que sua dor ardesse num desejo de vingança. As pessoas precisavam vê-la bela. Ela precisava que as pessoas se arrependessem amargamente de terem rido dela. De sua feiúra.

Enquanto a garota feia se deixava levar pela sua recém adquirida vaidade e  desejos de vingança o espelho d'água via o reflexo dela se transformar acima dele. Lentamente o processo se revertia. E uma garota feia de interior gracioso, passava a ser feia. Feia como nunca havia sido antes.

O espelho começou a ficar desesperado. Se ele pudesse, gritaria pra ela naquele momento. “Olhe no que está se transformando!” Ele gritaria. Mas não podia. Estava incapacitado. A única coisa que podia fazer era assistir. 

Em um tímido momento, a garota interrompeu seus delírios de grandeza e voltou seu olhar para seu reflexo. Quase morreu ao perceber que ele estava mudando. Que seu maior medo estava se concretizando. Não! Ela não podia ser daquele jeito. Ela era linda. A mais bela de todas. As pessoas precisavam ver! “Não! Maldito espelho! Devolva minha beleza!”

Desolado, o espelho tentava lhe explicar que não era culpa dele. Que seu reflexo mudou porque ela mudou. Mas a garota feia não ouvia, não percebia. Entre sua raiva e seu desespero, finalmente havia lugar para a loucura. E num acesso desta, a garota se jogou contra o espelho, como se assim pudesse obrigá-lo a devolver o que ela pensava que ele havia lhe tirado.

O espelho, percebendo que não havia outra solução, enlaçou em suas águas a garota feia. Ela lutou e esperneou pra voltar a superfície. Mas de que adiantaria? Agora que a vaidade lhe consumia, não podia mais viver feia. E desistindo de lutar, deixou que o espelho a conduzisse até o interior de suas águas, onde a lembrança da garota mais bonita que já havia existido sempre existiria.

Essa é a história de um espelho d’água e de uma garota feia. De uma garota feia que foi afogada pela vaidade.

2 comentários:

  1. Pensei que ia ser um daqueles contos cansativos com final feliz, ou fúteis mas , lembrei que era um texto seu e por isso cheguei até o fim satisfeita com o desfecho. Obrigada.

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  2. haha Está me superestimando amiga. Mesmo assim fico feliz que tenha gostado. Suas críticas são sempre bem vindas. :D

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Beijo da garota que não defenestra ideias.