Outro dia uma pessoa me perguntou:
- Afinal, o que é defenestração?
Eu disse que era o que eu faria com a amiga que estava do meu lado se ela não parasse de me chatear. No entanto, para efeitos mais esclarecedores, posto aqui a crônica de Luis Fernando Veríssimo que me apresentou a esta fascinante palavra.
Se ainda não sabe o que é defenestrar, acabarei com o seu tormento. Leia e divirta-se. Se souber, leia também, vai se divertir do mesmo jeito.
Defenestração
Certas palavras
têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma
coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas
variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia
Negra.
Hermeneuta deveria
ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo
se complicaria.
- Os hermeneutas estão chegando!
- lh, agora é que
ninguém vai entender mais nada...
Os hermeneutas
ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus
enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela
confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio.
Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
- Alô...
- O que é que você
quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que
trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
A princípio foi o fascínio da ignorância.
Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e
imaginava coisas.
Defenestrar devia ser um ato exótico
praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de
calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
- Defenestras?
A resposta seria
um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e
insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores
profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas
misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos,
pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo até
tê-la usado uma ou outra vez, como em:
- Aquele é um defenestrado.
Dando a entender
que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada.
Mesmo errada, era
a palavra exata.
Um dia,
finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa
mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration".
Substantivo feminino.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha
ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e
lugar nos dicionários por alguma razão muito forte.
Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma
palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por
que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em
desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a
tempo.
- Les defenestrations. Devem ser
proibidas.
- Sim; monsieur le
Ministre.
- São um escândalo
nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
- Sim, monsieur le
Ministre.
- Com prédios de
três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido.
Mas daí para cima
vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz:
"Interdit de deffnestrer". Os transgressores serão multados. Os
reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter
convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez
ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar
cheio de defenestradores latentes.
- É esta estranha vontade de atirar alguém
ou algo pela janela, doutor...
- Hmm. O impulsus
defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se
preocupar - diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de
atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar
a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de
vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta
volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suite matrimonial no
17o andar.
- Querida...
- Mmmm?
- Há uma coisa que
eu preciso lhe dizer...
- Fala, amor.
- Sou um
defenestrador.
E a noiva, em sua
inocência, caminha para a cama:
- Estou pronta
para experimentar tudo com você. Tudo! Uma multidão cerca o homem que acaba de
cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
- Fui defenestrado...
Alguém comenta:
- Coitado. E
depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu
uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar
esta crônica. Se ela sair é porque resisti.
Luís Fernando Veríssimo
Veríssimo resistiu, e me inspirou a resistir também, toda vez que eu sentisse essa estranha compulsão de atirar alguém ou algo pela janela. A pessoa estranha que sou se apegou a "defenestração" de tal modo, que hoje ela é praticamente a minha palavra de estimação. Que posso fazer, vai ver é o "impulsus defenestrex".
Mas agora quero saber de você, que palavra acha fascinante?