Existem certos acontecimentos que permanecem vivos em nossas memórias apesar da sobrepujante força do tempo. Tão vívidos que por diversas vezes somos capazes de revivê-los. E de senti-los, como se as lembranças estivessem correndo em nossas veias, pulsando. Tem momentos que nos marcam profundamente, e outros, que mudam as nossas vidas. Esse é um deles.
A minha vida era a mesma desde a desgraça do meu nascimento. Há dezoito anos eu estava preso em uma eterna rotina miserável. Sem novidades, ou qualquer outra coisa que me lembrasse de vez em quando de que eu não estava morto. O meu coração era uma noite infinita, no qual a única canção tocada era a música do silêncio. Eu costumava dizer que havia desistido de buscar a felicidade, mas a verdade é que eu nunca tinha tido coragem pra ir em busca dela. Pra aceitar fracassos, se necessário. A verdade é que eu havia me acomodado.
Quando a gente se acomoda é fácil ter medo de mudar, é fácil se deixar pender a covardia. E diante da minha covardia, não restava espaço para que eu fosse aquilo que eu queria, ou para que eu fizesse o que realmente desejava. Diante da minha covardia não havia espaço para mim mesmo. Porém meus olhos estavam fechados para tais verdades até os acontecimentos daquele dia. Até beijá-la.
Eu nunca havia presenciado uma noite como aquela. A escuridão me cobria tão intensamente que pesava sobre os meus ombros. A chuva fria se deixava conduzir pelas violentas mãos do vento, enquanto caia compondo o único som que percorria aquelas ruas solitárias. Em minha teimosia acreditei poder chegar em casa antes que a água começasse a despencar do céu. Agora, eu procurava abrigo.
Corri para o lugar coberto mais próximo. Um toldo escuro que protegia da chuva uma grande caixa, que por algum motivo eu nunca havia reparado antes. O vento balançava o pano que a cobria e de vez em quando brincava de revelar o que estava por baixo, até o momento em que comecei a ficar curioso. Perto dela, eu a olhava de relance, como se estivesse diante de alguma ameaça. O vento, se compadecendo de minha curiosidade extrema, em uma rojada furiosa descobriu o que quer que fosse aquilo.
O susto foi tão grande que eu praticamente pulei pra longe, cambaleei e cai na chuva. Sentindo os pingos gélidos que atingiam a minha cabeça comecei a ficar dividido entre continuar me molhando e voltar para debaixo do toldo, pra perto do mistério e do perigo que eu sentia envolver aquela cela. Porque aquilo não era uma caixa, era uma jaula.
Dentro dela, pequenos olhos negros, tão negros quanto a noite que se elevava a cima de nós, me encaravam sob a tênue luz. Surpreendentemente a prisioneira era apenas uma menina, que de nada tinha de assustador a não ser os seus olhos frios. Me aproximei novamente, me deliciando com aquela intimidadora descoberta. A menina, encolhida num canto, engatinhou pra perto de mim também. E sorriu maliciosa
- Está com medo de mim? – Ela perguntou em uma voz macia.
- Bem, - eu disse – as celas existem por um motivo.
- Você não conhece o meu motivo para estar aqui.
- Não. – Eu murmurei. – Justamente por isso eu tenho medo. As pessoas costumam ter medo daquilo que desconhecem.
A menina gargalhou, se aproximando das grades de sua prisão. Sob a pouca luz do luar, seus olhos se tornaram ainda mais sombrios. A cada frase sua voz se tornava mais atemorizante do que a canção silenciosa que a noite costumava cantar pra mim.
- E você entende do assunto.
- Não. – Respondi automaticamente.
- Não foi uma pergunta. Eu sei que você entende do assunto.
Ela estava certa. Eu entendia de ter medo do desconhecido, mais do que deveria. Mais do que queria. E ela... Ela entendia de mim. Eu percebi naquele momento que aquela menina me conhecia. O temor percorreu todo o meu corpo, podia sentir a minha alma começando a desandar.
- Quem é você? – Eu perguntei o mais firme que consegui. Intrigado e assustado.
- Eu? – Ela sorriu divertida e pendeu a cabeça inocentemente. – Eu posso ser qualquer um. Sua mãe, seu pai, sua irmã. Uma pessoa do outro lado do mundo. – A menina parou de sorrir e me encarou séria, pronta pra cantar a minha sentença. – Eu. Posso. Ser. Você.
Comecei a levantar, me sentindo fraco, ofegante e um pouco trêmulo. Estava me preparando para fugir daquele instante, correr daquele lugar, mas as minhas pernas pareciam congeladas.
- Eu não sei o quê ou quem você é, mas não tem nada a ver comigo! – Gritei, sem certeza alguma.
- Não?! – Ela ergueu-se de súbito e segurou firmemente nas grades que a cercavam, como se estivesse disposta a arrancá-las a qualquer momento. – Você iria adorar acreditar nisso, não é?! Ah, como você ia adorar. Mas é tarde demais, você já entendeu a verdade. Você já percebeu, e mesmo que não admita, sabe que nós somos a mesma coisa. Eu sou você.
- Não! – Gritei o mais alto que pude. Tentando negar a mim mesmo, mas a voz dela, a voz da noite era mais alta do que qualquer pensamento confuso que eu pudesse ter.
- Eu sou você! E essa é a nossa prisão! Está feliz aqui dentro queridinho? Está feliz vivendo dentro de uma cela?! - Ainda sem conseguir me mexer ela me agarrou pelo colarinho da camisa e me puxou pra perto dela e de sua jaula. Exibiu um sorriso insano antes do tocar os seus lábios nos meus. Lábios com gosto de sangue, de desespero. Lábios com gosto de dor. Minha dor. E foi como se ela me tivesse aberto os olhos, eu pude enxergar a maneira como eu vivia. Pela primeira vez, eu vi a cela. Retomando a minha razão a empurrei pra longe o mais forte que pude, fazendo-a cair no chão. A menina não retornou, apenas levantou a cabeça e me encarou com um olhar enebriado de uma amarga loucura. – Bem vindo ao lar.
É cômodo sobreviver em uma cela enquanto você está de olhos fechados. Você não percebe que vive nela. Você aceita sobreviver preso enquanto não compreende que se limita, que se restringe. Eu aceitava sobreviver preso, eu decidi viver.
Foi então que consegui começar a correr, em direção a escuridão e as lágrimas do céu, deixando a menina e sua cela pra trás. Mas sabendo que eu nunca voltaria a ser o mesmo, porque não importa pra onde eu fosse, sua lembrança, a lembrança do que eu era e da minha prisão, estariam sempre comigo. Não importa o quanto eu corresse, eu nunca me esqueceria da desesperadora música que cantou o silêncio da noite. Naquela noite eu ouvi a cruel canção da verdade. E jamais meu coração fez silêncio de novo.