24 de janeiro de 2012

Sobre a Princesa e a Fera

“Era uma vez, em um reino distante, uma jovem princesa. Que, como todas as outras garotas do reino, estava crescendo. Este fato não passava despercebido por ninguém, muito menos pelo seu maior amigo e protetor. O rei. Ou seu pai, se preferir.

De vez em quando, ele pegava a si mesmo a observando de longe. Era como ver a face do Sol, o único motivo pelo qual ele sabia que nunca ficaria em escuridão. A sua eterna pequena princesa parecia crescer diante de seus olhos numa velocidade alarmante. A única coisa boa que tirava disso era a pessoa maravilhosa que ela estava se tornando. Tanto orgulho que às vezes não lhe cabia.

Um dia, e ele sabia que esse dia chegaria, ela lhe fez um pedido. Queria fazer uma viajem. Sozinha. O rei tinha consciência de que sua princesa precisava que ele dissesse sim, do mesmo modo como sabia que ela precisava crescer. Isso não impediu uma grande dor de se formar em seu coração super protetor.

Abraçando-a com ternura, seu pai se despediu. A encheu de conselhos que ela só entenderia mais tarde e por fim, beijou a sua testa, ainda despreparado para deixá-la ir.

- Papai... – A menina murmurou. – Não é como se eu fosse partir para sempre.

Os olhos daquele homem se encheram de lágrimas.

- Ah minha querida! Você vai aprender que o pra sempre pode ser relativo. Pra mim, ficar sem você, vai durar pra sempre. Porque a saudade de quem está longe transforma os segundos em horas e os anos em séculos.

A princesa, sentindo a dor do pai, o abraçou novamente. Aprendeu aquela recente lição mais cedo do que imaginava, quando em seu coração aquele instante durou pra sempre.

Naquela viagem a menina sobreviveu, sobreviveu e aprendeu com as inúmeras intempéries que lhe sobrevieram. Cada gota de chuva se tornava uma lição, cada ventania, uma repreensão. E apesar de tudo, não se arrependia de nenhum de seus passos, pois em uma hora ou em outra, eles a levariam parar casa.

Quando enfim percebeu que chegara a hora de retornar ao seu lar, a felicidade era tanta que transbordava o seu grande coração. Tratou rapidamente de enviar uma carta ao seu pai, comunicando o seu retorno. A carta chegou ao seu destino, mas a princesa...

Era tamanho o seu êxtase que a distraiu em seu caminho de volta. Confiou apenas em seu instinto e adentrou na estrada errada. A estrada não era feita de tijolos amarelos e nem a levaria para uma certa Cidade de Esmeralda.  Ao invés disso, a estrada a levou a um reino desconhecido, desolado e obscuro. Que cheirava a sangue e terror. Quando finalmente percebeu que tinha errado o caminho, voltou-se rapidamente. Infelizmente, era tarde demais.

Grandes olhos negros a encaravam. Eles não piscavam, nem se desviavam nem um segundo. Não havia vida neles. Então ela sentiu. A criatura havia aberto a boca e o seu bafo a atingiu como uma névoa podre. Isso não era, no entanto, com o que ela tinha de se preocupar. Dentes afiados se ergueram das gengivas da fera e um veneno espesso começou a escorrer de sua língua bifurcada.

Antes que reassumisse o controle de seu corpo, a fera rugiu, fazendo ecoar em seu peito a sentença da morte. Com uma de suas garras, a criatura jogou a princesa pra longe. Uma dor lancinante se apoderou de um dos lados de sua cabeça, quando atingiu o chão. Uma grande ferida tinha se aberto e de lá o sangue derramava sem piedade. Quando cambaleante, a princesa conseguiu se reerguer, começou a correr descontroladamente. Mas seu carrasco não a deixaria escapar facilmente. Não depois de ter ficado de frente com ela.

A princesa não escolheu uma direção, apenas tentou se distanciar o suficiente para que a fera desistisse. Em seu pânico, entrou numa floresta cada vez mais densa. Pensou em encontrar ali, uma maneira de se esconder, mas só conseguiu dificultar a sua própria fuga.

Ela caiu e se levantou tantas vezes que quando tropeçou novamente, não conseguiu mais levantar. Então ao invés de tentar lutar contra a morte, ela fechou os olhos. E em um suspirou extraiu de si toda esperança de sobreviver. Pensou em sua casa, no que tinha deixado pra trás, nos sonhos e esperanças que morriam com ela. Pensou em seu pai. De tudo isso se despediu em pensamentos, sorrindo da ironia de que ia mesmo partir para sempre.

Quando o odor fétido chegou ao seu nariz, ela sabia que a fera a tinha alcançado. E foi então que...”

- Senhor? – O homem encarou o médico que acabava de aparecer na porta do quarto de sua filha, interrompendo sua narrativa. – O senhor precisa ir agora. – Ele pediu mais um minuto. O médico observou o homem sentado em sua cadeira, contando para sua “princesa” adormecida mais uma história que teria um final feliz. Assentiu o pedido e fugiu do quarto como se pudesse fugir de sentir a dor daquele pai desesperado.

A se ver sozinho, aquele homem, que não era nenhum rei, aproximou-se do leito de sua filha para se despedir. Tocou a enorme cicatriz que adornava sua cabeça e encostou a sua testa na dela. Deixou que as lágrimas que rolavam em seu rosto caíssem nos dela e se tornassem as lágrimas que ela não podia chorar.

- Essa história – Ele sussurrou, simplesmente porque não tinha forças pra falar mais alto. – não termina aqui. Mas se não se importar, eu posso lhe adiantar o final. O rei não deixa a fera levar a princesa, assim como eu não vou deixar a fera te levar minha pequena. Eles dizem, que talvez, você possa ouvir a minha voz, se estiver me ouvindo eu quero que saiba que eu te amo. Muito. E que vou fazer você despertar nem que para isso eu tenha que deixar um príncipe beijá-la.  – Ele sorriu tristemente. – Não me deixe criança. Eu volto depois, enquanto isso, não me deixe. – Ele beijou a testa da filha e saiu, sem ter tempo de notar os olhos negros e sem vida que assistiam àquela cena.

Naquela noite, a fera levou a princesa adormecida antes que a sua história pudesse chegar ao “felizes para sempre”.

20 de janeiro de 2012

Sobre uma muralha

Não muito longe de nós há uma menina embalando um coração machucado. Ele adormeceu em seu colo pra se ver livre, mesmo que momentaneamente, da dor da decepção. Não a primeira, mas provavelmente a pior de sua jovem vida. A menina e o coração costumavam dizer que se casariam com ele. Isso sempre era motivo de risos para as pessoas a sua volta, agora ela achava que entendia porque era tão engraçado. É claro, poderiam ter dito pra ela não confiar seu coração a ele, mas não disseram.

Em seus braços, seu coração permanecia. Pensava em um modo de protegê-lo enquanto percorria as suas feridas com dedos tímidos. Algumas recentes e abertas e outras que ela pensou já estarem cicatrizadas há muito tempo. Não estavam. O coração sobreviveria, eles dois sabiam. Ainda assim ela não conseguia parar de se sentir culpada. Se sentir culpada por confiar, por acreditar nas pessoas. A decepção instalou em seu coração e mente a desconfiança. E a desconfiança fez com que construísse uma muralha. Uma muralha ao redor de seu coração.

Um tijolo por ferida, e em pouco tempo se levantava uma torre forte. Erguia-se em volta de um coração adormecido o isolamento. Mesmo cansada ela continuou. Qual não seria a surpresa do seu melhor amigo quando acordasse e visse o que ela tinha feito por ele. Para isso, deixaria uma pequena janela. Uma única fonte de contato com o mundo.

Enfim, o coração despertou. Um grito ecoou pelo silêncio recém estabelecido ao seu redor. Um grito suficientemente alto para acordar a menina que agora descansava perto de sua janela. Assustada, ela perguntou ao seu coração qual era o problema.

- O problema? – Indagou. – Como você pode não ver? Ele é tão grande que provavelmente pode ser visto do espaço!

- Ah! Isso? – Ela apontou para a grande muralha que se estendia ao redor do coração. – É um presente.

E então ela explicou, e apesar de sua resignação inicial, no fim o coração acabou aceitando. Era para sua proteção. Para que nunca mais sofresse. Para que ninguém nunca mais lhe machucasse.

E assim o tempo foi passando. A menina sempre em contato com o mundo, porém o mundo, nunca em contato com o seu coração. Ele a observava para passar o tempo e de vez em quando até conversava com outros corações que passavam em frente a sua janela. Corações felizes, corações feridos. Faziam o seu dia, vivia e sentia través deles. Porque a torre, ele foi percebendo, além de lhe impedir de se magoar, o impedia também de sentir qualquer coisa que não fosse um eterno vazio.

Até que um dia... Aconteceu. O coração se distraia observando as aves no céu quando outro coração desmaiou bem em frente a sua janelinha. Ele estava ferido, mas mesmo assim era belo. Nunca tinha visto nada igual. O desespero o apertou. Queria ajudá-lo, entretanto, estava preso em sua própria torre.

Ele gritou pela ajuda da menina. Ela, ouvindo o pedido de socorro do seu coração, correu com todas as forças e se surpreendeu ao ver que nada tinha lhe acontecido. Ao invés disso, encontrou outro coração. Ao aproximar-se desse estranho se encantou com a beleza das suas feridas e ficou apavorada. Como podia ser? Ao encarar o seu próprio coração viu a sua reação refletida nos olhos dele.

A menina cuidou do coração como se fosse o seu, enquanto esperava seu dono aparecer. Quando o menino apareceu, lágrimas rolavam pelo seu rosto. Lágrimas que se tornaram incontroláveis depois de entender o que aquela garota fez pelo seu coração. Ele agradeceu e depois se sentou ao seu lado para esperar o despertar.

Em sua espera, ele perguntou a respeito daquela grande construção. Ela falou e depois sugeriu que ele fizesse o mesmo ao redor do seu. Não podia deixar que aquele frágil ser se ferisse ainda mais. Entretanto, ele apenas disse que não teria coragem de cometer aquela grande injustiça para com o seu coração.

A menina não compreendeu, mas o seu coração pela primeira vez na vida, sim. A beleza das feridas vem de aceitá-las e superá-las. E mesmo estando, aquele outro coração adormecido, cheio delas, o coração da menina não sentia pena dele, aliás, o invejava. Porque todo mundo merece sentir, mesmo que machuque, mesmo que doa e magoe. Isso é, nada mais, nada menos, a vida.

Abriu-se então, no coração da menina, a maior das feridas, a que não era causada pelos sentimentos, pela confiança, pelo amor. Era uma ferida causada pelo nada. Era causada pela falta. O coração não mais precisava ser protegido; não queria ser protegido. Que a torre caia. Que a muralha de desfaça. Que os sentimentos venham. Que machuquem, que arranquem um pedaço de mim, que marquem, que me explodam, mas que venham. E que eu ame. Como jamais amei. Ou que odeie. Como nunca antes. Mas que eu sinta. Por favor, que eu sinta.

O coração estava, finalmente, pronto para começar a viver, faltava agora apenas uma coisa. Convencer a menina de que ela também podia estar pronta.  Olhando-a nos olhos ele viu o tamanho de sua desconfiança e falta de fé. E então, será que ele conseguirá fazê-la acreditar novamente?

19 de janeiro de 2012

Sobre lembrar. Sobre esquecer.

"Eu hoje joguei tanta coisa fora
Eu vi o meu passado passar por mim
Cartas e fotografias gente que foi embora
A casa fica bem melhor assim"
                                         (Os Paralamas do Sucesso)

Hoje eu joguei tanta coisa fora. Mas o que devia ir, ainda não foi embora. Simplesmente porque eu me apeguei demais a certas coisas. Eu me apeguei demais a certas coisas. E agora eu não consigo me desfazer delas e das lembranças que me trazem. Estou como uma viciada. Viciada em memorias. 

Você disse que depois de um tempo não lembraríamos mais. Eu não acreditei. Eu achei que nunca esqueceria. E só agora percebo que não esquecer nunca não é tão bom assim. Porque nós nunca lembramos só das coisas boas e mesmo que lembrássemos... Passou. E isso magoa e machuca. Agora, eu preferia não lembrar mais, ter esquecido e seguido em frente. Não era esse o nosso lema?

Infelizmente, tudo continua guardado nessas caixas literais e figurativas que a gente tem nos porões das nossas memórias. Talvez o pior, o que realmente me impeça de esquecer, é o fato de que essa história não teve um ponto final. Eu queria ter me despedido, eu queria que tivesse se despedido ao sair da minha vida. Até hoje eu espero um desfecho para as reticências que você deixou.