17 de março de 2012

Sobre Defenestração

Outro dia uma pessoa me perguntou:
- Afinal, o que é defenestração?
Eu disse que era o que eu faria com a amiga que estava do meu lado se ela não parasse de me chatear. No entanto, para efeitos mais esclarecedores, posto aqui a crônica de Luis Fernando Veríssimo que me apresentou a esta fascinante palavra. 
Se ainda não sabe o que é defenestrar, acabarei com o seu tormento. Leia e divirta-se. Se souber, leia também, vai se divertir do mesmo jeito.

Defenestração

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia
Negra.
Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo se complicaria.
- Os hermeneutas estão chegando!
- lh, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
- Alô...
- O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. 
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas.
Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
- Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
- Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada.
Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte.
Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo. 
- Les defenestrations. Devem ser proibidas.
- Sim; monsieur le Ministre.
- São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
- Sim, monsieur le Ministre.
- Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido.
Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de deffnestrer". Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
- É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
- Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suite matrimonial no 17o andar.
- Querida...
- Mmmm?
- Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
- Fala, amor.
- Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
- Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo! Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
- Fui defenestrado...
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.

Luís Fernando Veríssimo

Veríssimo resistiu, e me inspirou a resistir também, toda vez que eu sentisse essa estranha compulsão de atirar alguém ou algo pela janela. A pessoa estranha que sou se apegou a "defenestração" de tal modo, que hoje ela é praticamente a minha palavra de estimação. Que posso fazer, vai ver é o "impulsus defenestrex". 
Mas agora quero saber de você, que palavra acha fascinante?

6 comentários:

  1. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk² adoro esses textos engraçados, acho geniais! Brincar com as palavras não é para qualquer um. Perdi a conta de quantas vezes ri alto aqui lendo essa crônica.
    Nem sei responder sua pergunta, sobre qual palavra eu acho fascinante... mas agora isso me pegou, vou procurar uma. HEHE'
    Ah, já copiei aquele post! \õõ Obrigado por permitir.
    Até mais ;*

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  2. Oi Mallu
    A minha irmã mais velha que ama Luis Fernando Veríssimo vive recitando esse texto, então eu já o conhecia. Mas as vez não dá vontade de desfenestrar o chefe por exemplo? (kkkkkkkk).
    Muito bom, ri muito, como seu amigo Heito aí acima.
    Bjos. Bom domingo.

    http://ashistoriasdeumabipolar.blogspot.com.br

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  3. Oi Mallu,

    Tudo bem? Não conhecia esse texto de LFG, bem como o verbo desfenestrar. Agora ficarei tentada a usá-lo por hobby ou que sabe como saída à francesa. Maravilha! O problema agora é controlar a vontade de dar ação ao verbo.

    Bom domingo!

    Beijos.
    Lu

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  4. Adoreei o texto, ri muito aqui! Ah, não lembro nenhuma palavra agora, são tantas.. Mas defenestrar sem dúvida é excelente, haha!

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  5. Olá Linda! Como foi gostosa essa leitura, de verdade. Me inspirou, não só a conhecer palavras novas, como também a defenestrar rs
    Estou seguindo, parabéns pelo excelente blog.
    Beijos
    Sah
    saahandradee.blogspot.com

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  6. Eu sou tão apaixonado por palavras que não tenho nenhuma em mente para citá-la como minha favorita.
    Já conhecia o sinônimo desta palavra e realmente, embora tenha que trabalhar o autocontrole, sinto desejo de defenestrar muita gente. ahah.
    Melhor defenestrá-las nos escritos.

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Beijo da garota que não defenestra ideias.