13 de junho de 2012

Sobre a música que canta o silêncio da noite


Existem certos acontecimentos que permanecem vivos em nossas memórias apesar da sobrepujante força do tempo. Tão vívidos que por diversas vezes somos capazes de revivê-los. E de senti-los, como se as lembranças estivessem correndo em nossas veias, pulsando. Tem momentos que nos marcam profundamente, e outros, que mudam as nossas vidas. Esse é um deles.

A minha vida era a mesma desde a desgraça do meu nascimento. Há dezoito anos eu estava preso em uma eterna rotina miserável. Sem novidades, ou qualquer outra coisa que me lembrasse de vez em quando de que eu não estava morto. O meu coração era uma noite infinita, no qual a única canção tocada era a música do silêncio. Eu costumava dizer que havia desistido de buscar a felicidade, mas a verdade é que eu nunca tinha tido coragem pra ir em busca dela. Pra aceitar fracassos, se necessário. A verdade é que eu havia me acomodado.
Quando a gente se acomoda é fácil ter medo de mudar, é fácil se deixar pender a covardia. E diante da minha covardia, não restava espaço para que eu fosse aquilo que eu queria, ou para que eu fizesse o que realmente desejava.  Diante da minha covardia não havia espaço para mim mesmo. Porém meus olhos estavam fechados para tais verdades até os acontecimentos daquele dia. Até beijá-la.
Eu nunca havia presenciado uma noite como aquela. A escuridão me cobria tão intensamente que pesava sobre os meus ombros. A chuva fria se deixava conduzir pelas violentas mãos do vento, enquanto caia compondo o único som que percorria aquelas ruas solitárias. Em minha teimosia acreditei poder chegar em casa antes que a água começasse a despencar do céu. Agora, eu procurava abrigo.
Corri para o lugar coberto mais próximo. Um toldo escuro que protegia da chuva uma grande caixa, que por algum motivo eu nunca havia reparado  antes. O vento balançava o pano que a cobria e de vez em quando brincava de revelar o que estava por baixo, até o momento em que comecei a ficar curioso. Perto dela, eu a olhava de relance, como se estivesse diante de alguma ameaça. O vento, se compadecendo de minha curiosidade extrema, em uma rojada furiosa descobriu o que quer que fosse aquilo.
O susto foi tão grande que eu praticamente pulei pra longe, cambaleei e cai na chuva. Sentindo os pingos gélidos que atingiam a minha cabeça comecei a ficar dividido entre continuar me molhando e voltar para debaixo do toldo, pra perto do mistério e do perigo que eu sentia envolver aquela cela. Porque aquilo não era uma caixa, era uma jaula.
Dentro dela, pequenos olhos negros, tão negros quanto a noite que se elevava a cima de nós, me encaravam sob a tênue luz. Surpreendentemente a prisioneira era apenas uma menina, que de nada tinha de assustador a não ser os seus olhos frios. Me aproximei novamente, me deliciando com aquela intimidadora descoberta. A menina, encolhida num canto, engatinhou pra perto de mim também. E sorriu maliciosa
- Está com medo de mim? – Ela perguntou em uma voz macia.
- Bem, - eu disse – as celas existem por um motivo.
- Você não conhece o meu motivo para estar aqui.
- Não. – Eu murmurei. – Justamente por isso eu tenho medo. As pessoas costumam ter medo daquilo que desconhecem.
A menina gargalhou, se aproximando das grades de sua prisão. Sob a pouca luz do luar, seus olhos se tornaram ainda mais sombrios. A cada frase sua voz se tornava mais atemorizante do que a canção silenciosa que a noite costumava cantar pra mim.
- E você entende do assunto.
- Não. – Respondi automaticamente.
- Não foi uma pergunta. Eu sei que você entende do assunto.
Ela estava certa. Eu entendia de ter medo do desconhecido, mais do que deveria. Mais do que queria. E ela... Ela entendia de mim. Eu percebi naquele momento que aquela menina me conhecia. O temor percorreu todo o meu corpo, podia sentir a minha alma começando a desandar.
- Quem é você? – Eu perguntei o mais firme que consegui. Intrigado e assustado.
- Eu? – Ela sorriu divertida e pendeu a cabeça inocentemente. – Eu posso ser qualquer um. Sua mãe, seu pai, sua irmã. Uma pessoa do outro lado do mundo.  – A menina parou de sorrir e me encarou séria, pronta pra cantar a minha sentença. – Eu. Posso. Ser. Você.
Comecei a levantar, me sentindo fraco, ofegante e um pouco trêmulo. Estava me preparando para fugir daquele instante, correr daquele lugar, mas as minhas pernas pareciam congeladas.
- Eu não sei o quê ou quem você é, mas não tem nada a ver comigo! – Gritei, sem certeza alguma.
- Não?! – Ela ergueu-se de súbito e segurou firmemente nas grades que a cercavam, como se estivesse disposta a arrancá-las a qualquer momento. – Você iria adorar acreditar nisso, não é?! Ah, como você ia adorar. Mas é tarde demais, você já entendeu a verdade. Você já percebeu, e mesmo que não admita, sabe que nós somos a mesma coisa. Eu sou você.
- Não! – Gritei o mais alto que pude. Tentando negar a mim mesmo, mas a voz dela, a voz da noite era mais alta do que qualquer pensamento confuso que eu pudesse ter.
- Eu sou você! E essa é a nossa prisão! Está feliz aqui dentro queridinho? Está feliz vivendo dentro de uma cela?! - Ainda sem conseguir me mexer ela me agarrou pelo colarinho da camisa e me puxou pra perto dela e de sua jaula. Exibiu um sorriso insano antes do tocar os seus lábios nos meus. Lábios com gosto de sangue, de desespero. Lábios com gosto de dor. Minha dor. E foi como se ela me tivesse aberto os olhos, eu pude enxergar a maneira como eu vivia. Pela primeira vez, eu vi a cela. Retomando a minha razão a empurrei pra longe o mais forte que pude, fazendo-a cair no chão. A menina não retornou, apenas levantou a cabeça e me encarou com um olhar enebriado de uma amarga loucura. – Bem vindo ao lar.
É cômodo sobreviver em uma cela enquanto você está de olhos fechados. Você não percebe que vive nela. Você aceita sobreviver preso enquanto não compreende que se limita, que se restringe. Eu aceitava sobreviver preso, eu decidi viver.
Foi então que consegui começar a correr, em direção a escuridão e as lágrimas do céu, deixando a menina e sua cela pra trás. Mas sabendo que eu nunca voltaria a ser o mesmo, porque não importa pra onde eu fosse, sua lembrança, a lembrança do que eu era e da minha prisão, estariam sempre comigo. Não importa o quanto eu corresse, eu nunca me esqueceria da desesperadora música que cantou o silêncio da noite. Naquela noite eu ouvi a cruel canção da verdade. E jamais meu coração fez silêncio de novo.

14 comentários:

  1. Olá Malluzinha, passo mais tarde pra ler seu texto, creio que deve estar ótimo! Vim só pra avisar que eu publiquei um poema seu lá, passa lá pra ver : http://www.spiderwebs.com.br/

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  2. L, este seu texto me fez lembrar de alguns trechos do filme The Wall do Pink Floyd, não sei se já assistiu. Eu assisti várias vezes, é bem impressionante. Nele mostra que, nós já nascemos em uma espécie de cela (no caso, cercado por muros, que vão se formando tijolo por tijolo), o primeiro tijolo é a superproteção da mãe, depois vem a escola e, a cada passo da vida que damos, acabamos no mesmo lugar até conseguir romper este muro.
    Concordo que o ser humano tem a tendência de temer aquilo que desconhece, por esta razão, buscar o conhecimento e principalmente o auto-conhecimento é muito importante para não deixar a vida passar.

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  3. Eu lembro do The Wall, forte mesmo..
    A metáfora que usastes neste conto foi muito interessante, a forma como o jovem despertou para a vida e percebeu o quanto estava se encarcerando dentro dele mesmo.. nossa, ótimo texto! Envolvente e instigador, não consegui tirar os olhos até a ultima linha. Parabéns.

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  4. Que texto mais intrigante Malu! Ele viu que na verdade, ela era ele aprisionado, sabe, pessoas se sentem assim ás vezes na vida real, aprisionadas a uma vida que na verdade elas não queriam ter, mas elas estão tão acostumadas a viver aquela vida, que não percebem que aquilo pode ser uma prisão. Pelo menos, foi o que concluí de seu texto >< rs Muito bem escrito por sinal <3

    Beijos
    http://mon-autre.blogspot.com.br/

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  5. Mallu,
    primeiro quero te dizer que li teu poema no blog da Sabrina, muito bom!
    Sobre este conto te digo que está muito bem-escrito! Incrível como visualizei toda cena, justamente porque está bem descrito que isso é possível.
    A história é muito convincente e a metáfora empregada também. Você aliou suspense com reflexão, achei isso muito interessante!
    Beijão!

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  6. É a primeira vez que visito seu blog, e já me deparo com este texto sincero e de um grande sentimento...
    Sério, eu gostei muito, principalmente da parte: "Naquela noite eu ouvi a cruel canção da verdade. E jamais meu coração fez silêncio de novo."; me lembrou muito Caio Fernando Abreu, não sei porque...
    Gostei! ^^

    Jader Monteiro
    http://cinco-datarde.blogspot.com.br/

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  7. Muito bonito e intenso esse conto Mallu!
    Gostei imenso!
    Bj

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  8. Boa tarde, Mallu.
    Excelente texto o seu, parabéns.
    Todos nós, consciente e/ou inconscientemente, criamos celas imaginárias.
    Se vamos continuar a viver nelas ou quebrar as grades,é uma decisão somente e apenas nossa.
    Abraço, Mallu.

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  9. Oi Mallu
    Não sei porque vc gosta de "desaparecer" as vezes (kkkkkkk), vc escreve super bem. Quero te pedir desculpa porque esqueci que vc também é poetisa, só lembrei quando vi o seu poema no blog da Sabrina, senão tinha incluído no meu penúltimo post, é a idade (kkkkkkkk), quando vc chegar lá vc vai ver. Menina, tenho até vergonha do meu conto perto do seu, o meu é só uma histórinha trivial, o seu é tão profundo, parece até um texto da Lú Santa Rita. Engraçado eu interpretei como uma batalha da personagem principal com seu eu.
    Bjão e um ótimo final de semana.

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  10. Ola Mallu,

    Adorei o seu texto! Profundo e intenso, parabéns!

    Sabe, eu tinha em mente um comentário mas por coincidência o parceiro Chris já escreveu. É que durante a leitura lembrei logo do filme "Pink Floyd - The Wall", onde Roger Watters descreve o drama vivido durante sua vida (sou fã da banda). Mas o parceiro já citou, então só me resta desejar mais uma vez os parabéns por um texto divinamente escrito.

    Abraços, Flávio.
    --> Blog Telinha Crítica <--

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  11. Você está melhor a cada dia que passa, essa é a minha conclusão depois de ter lido esse conto. Parabéns, Lud.

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  12. Oi Mallu,

    Tudo bem? O texto está muito bem escrito, assim como o poema lá no blog da Sabrina.

    Penso que a maior prisão não tem grades, mas é, sem dúvida, o nosso espaço de se libertar. Penso no nosso coração.

    Bom final de semana!

    Lu

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  13. Seu texto me prendeu. Não conseguia tirar os olhos até terminar de ler.
    O engraçado é que só nos libertamos quando encontramos com nós mesmos, né? O pior de tudo que sempre nos encontramos em situações desesperadoras...

    Beijo

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  14. Olá M.,
    Não me lembro de ter lido algo parecido feito por você, então fiquei um tanto surpresa,mas a medida que entendi onde queria realmente chegar eu encontrei você. O caso é que o texto está muito bom e se eu não estivesse tão fria e cínica... Talvez um outro dia eu chore.
    Não defenestre suas respostas, não é nada educado.

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Beijo da garota que não defenestra ideias.